sexta-feira, 4 de junho de 2010

Parteiras, heroínas da resistência – Por Vinicius Boreki

Profissão está quase extinta nos grandes centros. Mas em locais distantes elas são o único apoio para quem vai dar à luz
Elas contam os anos trabalhados pela idade dos homens e mulheres que colocaram no mundo. Atualmente, porém, sua profissão foi relegada pelo avanço tecnológico da medicina, situação proibitiva para a continuidade de seu trabalho. O crescimento dos hospitais, sobretudo nos grandes centros, facilitou a migração do parto dos domicílios para os centros de saúde, criando uma sombra sobre a figura da parteira. Apesar de a profissão estar praticamente esquecida nos municípios desenvolvidos, comemorou-se ontem o Dia Internacional da Parteira, data instituída pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1991.

No Paraná, 99,5% dos partos de hoje ocorrem nos hospitais, de acordo com a Secretaria de Estado da Saúde (Sesa). As parteiras, contudo, não respondem nem sequer pelos 0,5% restantes, pois nesse índice está incluída a maioria dos nascimentos ocorridos no deslocamento para os centros médicos. Realidade diferente das regiões Norte e Nordeste, onde perto de 60% dos nascimentos acontecem nos hospitais. No interior e em locais mais distantes, é difícil mensurar a relevância das parteiras, muitas vezes o único ponto de apoio para as parturientes. Esse cenário, hoje tão distante da realidade curitibana, era recorrente na cidade há 20 anos.

Elfrida Taborda Siqueira, de 80 anos, foi uma dessas parteiras, atuando durante 26 anos na região do Boa Vista, na capital. A simpática senhora desconhece quantos partos fez ao certo no tempo de serviço, mas estima a realização de um a dois por mês, somando entre 300 e 600 partos. “Se for mais, não faz mal”, diz. Ao lado de Elfrida, outras quatro parteiras atuavam no Boa Vista, mas todas já morreram. O diploma de parteira prática de Elfrida data de 1964, e ela seguiu na profissão até 1990. Não continuou pelas constantes dores na região lombar, pois vontade não faltava. “Não dava para ficar mais abaixada por muito tempo e estava perdendo a agilidade necessária”, relata.

Apesar de haver curso, o dom é fundamental para as parteiras, especialmente para não se desviar do caminho considerado correto. Enquanto realizava a média de um parto por mês, diariamente alguém batia na porta de Elfrida solicitando abortos. “Eu seria rica se tivesse feito o que me pediam. Mas minha consciência não teria sossego”, conta. Elfrida pediu a Deus a força para trilhar um caminho digno: “Pedi para que não passasse no teste se me pervertesse em algum momento”. Coragem é outro dos atributos necessários. “Na hora do parto, é só Deus e mais ninguém”, conta a ex-parteira leiga Zilda Aparecida da Silva, de 53 anos, que realizou 8 partos nos 17 anos de atuação.

O ideal para a parteira era acompanhar a gestação, mas, em muitos casos, era inviável. O chamado surgia só no momento do nascimento. “A gente chegava em cima da hora e fazia o parto. Quando via que (o bebê) não estava em posição, mandava para o hospital”, lembra Elfrida. Nos 26 anos de atuação, a parteira do Boa Vista se orgulha de êxito em todos. “Só em um não deu certo, mas não por minha culpa. Quando cheguei, o bebê já estava morto”, diz. Zilda também colocou todos os bebês no mundo com sucesso, o último deles há 17 anos.

Zilda sabe e aceita que sua profissão está fadada ao esquecimento, reconhecendo os benefícios da evolução tecnológica. “Hoje existem muitos recursos, além de mais médicos e enfermeiras. Com isso, o pessoal quase não precisa mais procurar as parteiras”, diz. “Mas, se precisar, estou disposta a ajudar.”

Emoção

Ser parteira é também se emocionar. Não com os nascimentos em si, mas com fatos ocorridos mais tarde. Elfrida tem vivo na memória o dia em que um homem desconhecido, com cerca de 45 anos, bateu em seu portão. Em razão da violência, Elfrida hesitou em atender, mas algo a instigou a seguir em frente. Ela não se arrependeu. “Eu havia feito o seu parto, e ele veio me agradecer dizendo: ‘Foi a senhora que me pegou nas mãos pela primeira vez’”, conta. “Eu conheço todos eles. Me chamam de mãezinha ou tia. É emocionante, um prazer muito grande sentir esse carinho todo”, afirma Zilda.

* * * * *

“Elas nasceram do ventre úmido da amazônia, no extremo norte do Brasil, no estado esquecido do noticiário chamado Amapá. O país pouco as escuta porque perdeu o ouvido para os sons do conhecimento antigo, para a música de suas cantigas. Muitas não conhecem as letras do alfabeto, mas são capazes de ler a mata, os rios e o céu. Emersas dos confins de outras mulheres com o dom de pegar criança, adivinham a vida que se oculta nas profundezas. É sabedoria que não se aprende, não se ensina nem mesmo se explica. Acontece apenas. Esculpidas por sangue de mulher e água de criança, suas mãos aparam um pedaço ignorado do Brasil. O grito ancestral ecoa do território empoleirado no cocoruto do mapa para lembrar ao país que nascer é natural. Não depende de engenharia genética ou operação cirúrgica. Para as parteiras, que guardaram a tradição graças ao isolamento geográfico do berço, é mais fácil compreender que um boto irrompa do igarapé para fecundar donzelas que aceitar uma mulher que marca dia e hora para arrancar o filho à força.”

Trecho da reportagem “As parteiras da floresta”, uma de dez matérias publicadas no livro O Olho da Rua, de Eliane Brum, da Revista Época. Ela esteve no Amapá, onde 90% da população nasce da mão das parteiras. O livro foi publicado pela Editora Globo em 2008.


Matéria publicada em 06/05/2010 no jornal Gazeta do Povo. Disponível em:

http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?tl=1&id=999878&tit=Parteiras-heroinas-da-resistencia, acesso em junho de 2010.

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