É possível tentar entender os conflitos que observamos nesta questão sem sucumbir aos apelos sedutores do maniqueísmo?
Eu acredito que sim, desde que entendamos o quê realmente representam estas entidades.
O COFEN, assim como o CFM, são órgãos da corporação. Foram criados para proteger as conquistas destas atividades na sociedade. Mais ainda: são entidades sustentadas pelos componentes desta corporação, que os elegem para proteger seus direitos e privilégios.
Em outras palavras: o COFEN não é um instrumento da sociedade para regular a enfermagem, tanto quanto o CFM não foi criado pela sociedade para regular e proteger a atividade médica. Estas entidades são órgãos corporativos, que são criações das próprias corporações para defender, respectivamente, a enfermagem e a medicina.
Falando da medicina, que é o que conheço por dentro, quando o CFM condena um médico não o está fazendo para proteger os pacientes, e nem para proteger a excelência e a qualidade dos atendimentos, mas para proteger os MÉDICOS. Para o CFM um mau médico atrapalha a imagem que a sociedade tem da medicina e diminui o valor social da corporação. Não cabe ao CFM proteger a população, defender uma medicina baseada e centrada em evidências, melhorar as condições de saúde das pessoas ou criar espaço para uma medicina mais humanizada. Isto NÃO É a função precípua de um conselho (mesmo que esta seja a idéia vendida para nós). Esta se limita a proteção da medicina, seus pressupostos éticos, e a defesa do médico. Isso explica, por exemplo, porque o CRM nunca move uma palha para criticar o excesso de cesarianas. Entretanto, médicos que trabalham estritamente dentro dos protocolos da OMS correm perigo, porque agridem os privilégios duramente conquistados pela categoria. Ele incomoda sua própria corporação, portanto é herético, não importa que benefício ele possa oferecer aos pacientes.
Vejam bem. Com isso não estou criticando a medicina e nem os conselhos médicos, tanto os CRMs quanto o CFM. Apenas quero mostrar que o trabalho destas instâncias é a proteção da medicina e não a proteção dos pacientes. E acho que este trabalho precisa ser feito mesmo, pois que sem ele os médicos ficariam desprotegidos diante de uma sociedade sensacionalista e que busca resultados positivos sempre, anestesiada que está por uma cultura que mitifica a tecnologia e promete a redenção através do acesso a ela.
Com o conselho de enfermagem, e de qualquer outra corporação, ocorre o mesmo.
O COFEN é o "cão de guarda" da enfermagem, e esta visão não é diminutiva; pelo contrário, mostra a verdadeira vocação deste órgão, que procura defender as conquistas e as prerrogativas da profissão. Está sempre a postos para defender quando a enfermagem está sob ameaça. Quando um grupo de profissionais, como as obstetrizes, ameaça os domínios das enfermeiras, este mecanismo de defesa é automaticamente acionado. É o mesmo efeito observado pelos CRMs em relação às Casas de Parto. O domínio do parto é médico (mesmo que uma enfermeira o realize, um médico será o responsável em última instância), e quando um estabelecimento determina a autonomia das enfermeiras na sua condução o sinal vermelho acende. PERIGO. Elementos estranhos invadem o flanco esquerdo das torres do castelo. Imediatamente é acionado o sistema de proteção.
Algumas enfermeiras vivenciam agora o MESMO fenômeno que eu passei quando da luta pela manutenção das Casas de Parto: o constrangimento de lutar por uma visão democrática, aberta e plural para a assistência ao nascimento, ao mesmo tempo em que sua categoria desaprovava a mesma idéia, preconizando um fechamento exclusivista. É necessária uma visão mais abrangente para se posicionar e para, enfim, lutar.
Ao mesmo tempo em que entendo a posição do COFEN (e também do CFM) eu também percebo que as decisões sobre esta questão devem estar ACIMA das posições parciais destas entidades. É um gigantesco equívoco confundir a vocação legítima destes conselhos em proteger as suas corporações com a necessidade de proteger a SOCIEDADE. Este necessário resguardo da sociedade cabe aos níveis mais altos da política; são decisões que precisam levar em consideração a complexidade da estrutura social, acima dos desejos e aspirações de grupos. Quando percebemos esta dicotomia, faz-se necessário posicionar-se de forma corajosa e determinada. Se a visão for centrada nas necessidades da sua própria profissão, a escolha pela posição do conselho de enfermagem é natural e coerente. Entretanto, se desejamos o fortalecimento das idéias de humanização do nascimento, o esforço pela manutenção de uma escola de parteria, desvinculada das escolas tradicionalmente “medicalizadas” de assistência ao parto (a medicina e a enfermagem), é a escolha mais sensata e correta.
As obstetrizes incomodam, pela sua liberdade e autonomia, as escolas tradicionais. Entretanto, eu creio que elas podem dar uma enorme contribuição ao debate da assistência ao nascimento humano.
Elas podem virar esse jogo.
Beijos
Ricardo Jones
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